Por Dirceo Stona
Seu Euzébio saiu de casa às nove horas da noite de uma sexta-feira, no dia 14 de junho de 1946. Ninguém ficou sabendo para onde ele foi. Ninguém tinha notícias de qual foi seu último lupanar e se mesmo assim aconteceu. Ninguém viu, na pequena cidade no centro do Estado, o homem que ao caminhar puxava de uma perna e que carregava em sua frente uma candeia.
A segunda-feira amanheceu marrenta, sem chuva, mas o beco estava escuro e frio, ainda com o solo molhado pelo sereno. Um ar envelhecido, difícil de respirar como que endurecido em sua quietude.
Passos pausados e lentos ressoavam como se fossem na noite que estava terminando, assim como terminou o óleo da candeia do Seu Euzébio. Na ladeira da viela Fernando Ferrari, uma das ruas principais no povoado que reunia, bailantas, botecos e o prostíbulo conhecido por Casa da Dona Eny, que tinha pista de dança, luz negra, mulheres sem nome próprio e tudo o mais, lá os homens do lugarejo buscavam a prática sexual pecaminosa no prazer barato, em troca de um trago de pinga e de algumas baganas qualquer. Seu Euzébio gostava do ambiente.
O homem com barba por fazer, ainda malcheiroso pela mistura de suor e álcool ingerido, que, pelas características descritas pela desolada Maria Aparecida, só podia ser o Seu Euzébio. Ele tinha perdido a gola do casaco e, se retirou involuntariamente do lugar em que estava, que com certeza não era na igreja que ficava em frente à praça. (Todas as igrejas no interior do Estado ficam na praça. Todas têm uma torre que se assemelha a um dedo que aponta para cima, como uma representação simbólica do dedo do Deus dos católicos)
No povoado, Fiorello, um alfaiate sem diploma para colocar pendurado na parede, que hoje seria chamado de atêlier, na época alfaiataria. Apreendeu a arte da costura no Exército Brasileiro, quase que no final da Segunda Guerra Mundial, em 12 de janeiro de 1946. Arte de como cortar um molde e fazer um paletó, na máquina de costura que ficava no centro da alfaiataria.
O jovem alfaiate costurava naquele dia nublado, quando começou sentir no ar um cheiro azedo que se propagava conduzido pelo vento, com marcas invisíveis nas entranhas da narina amarelada pela nicotina do cigarro palheiro. O cheiro vinha da rua e entrava pela porta entreaberta junto com o homem que puxava de uma perna e pedia socorro, para não perder o casamento com a morena cor de cuia, que ao caminhar deixa todos os outros homens loucos pelo balançar gostoso dos quadris, com jeito maroto de quem sabe o que tem e o que agrada a um homem, como foi publicado artigo da revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Morena que ao passar, deixava todos com água na boca, pelo cheiro de pecado que exalava, pelo maldoso jeito de sacodir as cadeiras, como que se flutuasse ao sabor das ondas do mar que ela nunca viu. Fiorello não conhecia Maria Aparecida, e com certeza, bom deixa isso para lá. Ele era muito temente a Deus, e, segundo a missa que ele tinha participado no último domingo, o sacerdote disse que não se deve desejar a mulher do próximo. Bem que este entrante nem era tão próximo, mas ele não queria pecar nem por pensamento, já que era casado recentemente e não podia trair a jovem esposa.
Fiorello, um homem elegante. O Alfaiate (com letras maiuscula) era madrugador. Levantava cedo, fazia o chimarrão, vestia o terno e colocava a gravata com um nó ao estilo francês que aprendeu a fazer com um cantor de teatro, que, por sua vez, dizia ser o nó preferido dos frequentadores do “Moulin Rouge”. Manhã atípica. Entra em cena Seu Euzébio esbaforido, suplicando uma solução para a gola do casaco que ele perdeu e não podia chegar em casa naquele estado deprimente. A morada do Seu Euzébio era a única, e ficava perto da olaria na Vila do Barro Vermelho. Lá que ele morava com Maria Aparecida.
Os olhares se cruzam. Um com ar de repreensão só por imaginar o que ele teria aprontado na noite anterior: o outro, com ar de Madalena arrependida sem saber o que dizer, mas, precisando enormemente do trabalho do artista do corte e da costura que há pouco teria chegado à pequena cidade com nome de santo. Santo que era hebraico e que construiu a igreja que o filho do Senhor o recomendou, com pedras sobre pedras e, por isso mesmo, ter recebido as chaves da casa de seu pai. Fiorello sabia que não podia rejeitar serviço, Seu Euzébio poderia vir a ser um futuro freguês. Sentou-se. Costurou a gola do casaco do esmolambado e foi, como sempre fazia, polir a tesoura e fazer brasa para o ferro de passar. Outro indivíduo viria para usar os serviços do novo estabelecimento. Assim foi, outro, outro e outro.
Escrever é uma tentativa de compreender a vida. Para Arthur Schopenhauer seria o fruto, não da quantidade de leitura, mas da capacidade de perceber as coisas com a clareza da alma e, ao mesmo, tempo dialogar com os outros por prazer. É o gozo pela felicidade, mas escrever sobre lembranças e histórias que personagens do passado montam seu pensar é lembrar da alfaiataria do seu Fiorello, parado atrás do alto balcão com a fita métrica no pescoço. É lembrar da máquina de costura com pedal, que para ele era quase que como um automóvel, coisa que ele nunca teve.
Quando Fiorello estava sorvendo o chimarrão e alguém perguntava a ele pelo Seu Euzébio, responderia: Seu Euzébio nunca existiu, nem ele e nem Maria Aparecida. Seu Euzébio é um sonho, é algo do nosso inconsciente, assim como um desejo oculto castrado e vetado pela moral em nossas faculdades mentais.